Sempre discuti muito a psicologia, que considero ciência incompleta. Por incrível que pareça e no entanto, das poucas sessões com psicólogo que fiz ao final de minha adolescência é que guardo uma indagação que jamais consegui responder ao longo da vida: por que alguém auto-suficiente, independente, precisa tanto assim da cumplicidade, do aplauso, da companhia do outro? Sinceramente, destas dicotomias e paradoxos é que sedimentamos nossa vida. Em um momento de festa, amamos bagunça e barulho e festejos e bebida. Quando cansados e loucos para dormir, extenuados após o árduo dia de trabalho, chamamos arruaceiro o vizinho que festeja, ligamos pra polícia, maldizemos a educação e os hábitos boêmios dos outros. Sei bem de boemia. Cresci em uma Belo Horizonte efervescente, dos barzinhos com música ao vivo, das boates, shows e barangas fáceis de pegar. Fui dos notívagos mais inveterados de minha época. As farras, no meu grupo de amigos, tinham que ter a minha participação, senão era voz corrente que seriam sem graça. O que eu aprontava de noite era notícia no dia seguinte, e no outro, e na semana inteira. No entanto, a solidão, o ressentimento, a timidez, sempre me acompanharam, me apavoraram como pragas auto-imunes, incuráveis. Consigo ficar sozinho na multidão, sabiam? Não é difícil para caras como eu, mas é assustador. Enrubesço-me com facilidade até hoje. Basta que o inesperado ou a raiva ou o embaraço batam-me à porta. É incontrolável. Tinha um amigo, o Gordo Estúpido (era assim que o chamávamos), que costumava dizer que detestava gente. Seu programa favorito era ouvir música isolado do mundo, acampar na Serra do Curral e assistir filmes antigos em fitas de VHS, de preferência muito Charlie Chaplin e terror \”B\”. Gostava de seus hábitos, compartilhava-os em sua maioria, mas não queria ser como ele e acreditava que encontraria meu nicho secreto, meu grupo de amigos especiais, meu espaço na história. Fui deixando o Gordo Estúpido para trás, ele que era nerd numa época em que ninguém conhecia essa palavra. Assim como não se conhecia o bullying, e como eu sofri com isso na escola e nos primeiros tempos, até aprender a dar porrada e a mandar os outros a merda e a fazer cara de mau. Adolescente que se preza tem que saber fazer cara de mau! Aprendi esta com um dos meus tios: faça cara de mau para não ter que ser mau de verdade, era o que ele dizia. Treinei muito na frente do espelho, eu que sempre fui inimigo da minha imagem, sempre me considerei feio ao longo da puberdade e início da vida adulta. Sou dos poucos caras que conheço que estão melhores depois dos quarenta do que estavam aos vinte ou trinta anos. A acne finalmente me abandonou e encontrei um ortodontista fantástico que me aprumou os dentes. Antes, era um Noel Rosa magrelo. Hoje sou um praticante de artes marciais ficando careca. Prefiro o segundo modelo. O cigarro é que continua, uma praga. Tentei parar de fumar quando tinha trinta anos, em plena Copa do Mundo de 1998, mas aquela final em que o Zidane nos mandou pro espaço com Ronaldo Fenômeno tendo convulsões me fez voltar rapidinho ao tabaco. Depois, meu pai morreu, era 2006. Tinha um câncer que nos levará a todos, fumantes e ex-fumantes de muitos cigarros por dia. Assustei-me com aquilo e tentei de novo parar de fumar, mas acreditava piamente que a necessidade de cigarro diminuiria com o tempo, e não era verdade. Parar de fumar é matar um leão por dia e uma bela manhã eu esqueci de matar o leão da vez e voltei aos meus queridos Marlboro, o cigarro do cowboy que também morreu de câncer. Os vícios estão aí para nos enfraquecer e para nos lembrar que não somos escravos da razão, como imaginava Kant, mas das emoções, como em Nietsche e Shopenhauer. Antes de tudo, somos escravos de nós mesmos, somos os nossos hábitos, as escapadelas, os absurdos, e os erros, enormes, incríveis, imperdoáveis erros, que se fosse possível voltar atrás no tempo voando ao redor da terra como o Super Homem do primeiro longa metragem, seria para desfazer o mau feito e a vergonha, porque não há nada mais constrangedor do que conviver com o erro. Felizes e fortes são os ignorantes e burros, que desconhecem o erro, ou fingem não conhecê-lo, e seu desconhecimento lhes serve como um lenitivo, uma carapaça blindada que lhes protege do mundo e de seus tropeços. Como ganhei desde cedo o dom – ou maldição – de enxergar muito bem a tudo ao meu redor, sofro muito com o que já fiz de errado. Recordo-me de tentar agradar e não conseguir, de acovardar-me diante de desafios, de negar o convívio às pessoas que verdadeiramente sempre me amaram, de não reconhecer meus limites, de não ser humilde com os humildes e de tentar ser melhor do que na verdade sou, um eterno aprendiz convivendo com os ensinamentos da vida, tanto aqueles que a gente compreende, quanto os outros, inumeráveis, tantos que nem conseguimos contá-los, e que são incompreensíveis. Pensando bem, os erros fazem parte de nós, e graças a eles é que somos o que somos. Eles nos forjam, assim como o sofrimento, e o importante é que os reconheçamos quando ocorrem, guardando-os em uma gaveta da estante de nossas memórias que só abrimos quando nos vêm e ideia idiota de que somos muito bons. Aí olhamos pro passado, reabrimos a gaveta das vergonhas, e nos apercebemos humanos, e é como se tudo voltasse ao normal.
Renato Zupo,
Magistrado e Escritor